sábado, 12 de maio de 2012

ANA E ÊME

Após o almoço, e conversas, e risadarias, e lembranças, e cafés, o Poeta desejou se trancar no quarto para dormir. Seus olhos não fechavam, já que um silêncio ensurdecedor e inquietante tiravam a pouca paz que, por ora, habitava a alma do Poeta.

Ele pensava em Ana, a esposa de Fred, e em Ême, a irmã do amigo e mãe de Ípsilon. Eram pensamentos de cores vermelhas e intensas. Os cheiros de gorduras misturados aos suores das mulheres maduras estavam excitando o Poeta, e seu falo estava quase a estourar.

As imagens dos braços fortes de Ême, impregnados com restos de temperos da cozinha ou o suposto odor de suas axilas desgastadas com os trabalhos árduos do dia a dia atiçavam as emoções abaixo da cintura do Poeta.

Para fugir dos pensamentos sobre Ême, pensa em Ípsilon, mas sua figura era frágil demais para o momento. Imediatamente, relembra o Poeta no abraço afetuoso que recebera de Ana, logo que chegou.

- Ana não pode ser fiel. Ela me trouxe ao seu peio. Ela me quer dentro dela. – pensa e se admira, constrangido, o Poeta.

Relembra o hálito amargo de Ana e suas unhas sujas. “Deve ter um cu fedido e cabeludo”, excita-se ainda mais ao especular.

Abruptamente, “toc-toc-toc-toc”, quatro toques grosseiros e fortes são dados na porta do quarto do Poeta, que se assusta, e se levanta, sem perceber-se nu, pois na intimidade. Ao abrir a porta, estão imundas e azedas, Ana e Ême, que logo entram.

- Você nos chamou, então viemos. Seus pensamentos estavam queimando nossas virilhas e coxas. – Disse Ana, a esposa infiel.

- Coma-nos, mas não pense em Ípsilon. E quando foder com ela, não tenha dó, ela virou crente. O recado está dado. Agora coma-nos!, ordena Ême, já com o corpo todo suado e gorduroso à mostra.

Quanto mais o Poeta socava o pênis, ora em uma, ora em outra, mais o chorume invadia o ambiente. Até que Ême, por causa da idade, decidiu dar por encerrado, e foi se refrescar no chão, para depois vestir-se.

Ana gozava pela última vez, pois seu ânus já estava dolorido, enquanto o Poeta tirava ceras antigas e ressecadas das orelhas da esposa infiel, que não o deixava penetrar na vagina, pois contava como mérito de não trair, assim, o marido.

Saíram, depois, as mulheres, para a cozinha ou para os trabalhos da casa, enquanto o Poeta foi procurar o paradeiro de Ípsilon. Era bom que ela soubesse que o Poeta era um bom rapaz.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

ALMOÇO

Depois daquela leitura esquisita, como fogo em palha seca espalhou-se pelas vilas da fazenda a história de um homem ainda mais louco e santo do que o finado Ribamar. Iam chegando de mansinho. Todos queriam ver de perto o Poeta. Eram homens e mulheres com as carnes afundadas em si mesmas e marcadas pelo Sol e pelo tempo e pela dor e pela raiva e pela saudade de quem nunca existiu.
 
A maioria parecia gado fraco faminto por água esperando mais da morte do que da vida. E a estes, a presença sacra de um Deus parecia tão distante e tão presente que tornaria tonto um bicho agnóstico.

Um cheiro de banha queimada saía da cozinha, e uma fumaça grossa como sal virgem ganhava o espaço infinito. Um cachorro latiu. Uma velha gorda e suada surgiu com uma panela de bronze sólida, colocando-a sobre a mesa que era tão grande que ia até ali de tão distante. Cabiam todas as pessoas que Fred Samburá desejasse convidar. Mas naquele instante, bastariam ele e o Poeta.

A velha gorda, depois de servi-los, gritava e batia palmas, desorganizando a multidão, tangendo dali os miseráveis para que pudessem comer em outro lugar. A velha gorda tinha o olhar rosado e dócil, acendeu um cachimbo de fumo forte e vil, olhou para o Poeta e sorriu. O carinho da velha fez o Poeta suar de nojo e de emoção; a feição lhe era familiar.

- Essa é minha irmã, Poeta! Chama-se Ême. - disse Fred.

- Ême!? - Sim. Ême. Ela é filha do primeiro casamento de papai, e tem exatamente trinta anos a mais do que eu, Poeta - completou Fred.

- Entendo... - o Poeta já ligava o olhar carinhoso de Ême com o sorriso de Ípsilon.

- E onde estão os outros que não vêm almoçar? - perguntou pensando em Ípsilon, que deveria estar ali em qualquer lugar.

- Esse almoço é nosso, amigo Poeta. Nosso!

- Obrigado!

- No jantar, acrescentaremos Ana, Ême, Ípsilon e Teodoro.

- Ípsilon e Teodoro? Eu não os conheço. Afirmou disfarçando e sorrindo sobre Ípsilon, como só os poetas sabem mentir.

- Ípsilon é minha sobrinha; Teodoro é o cachorro da casa.

E riram mais do que se alimentavam. Ali, naquele instante, o espírito do humor era o prato principal, e deveria ser devorado até o fim, pois a alegria tem alma breve. Bem breve.

terça-feira, 8 de maio de 2012

LEITURA DA CARTA DO MORTO

Fez-se na sala um silêncio tão ensurdecedor, que o Poeta se sentiu mal com sua missão: ser o arauto de um homem morto. Mas de um homem morto que lhe sorrira.

Dentro de um envelope simples, com escrita forte, sete folhas soltas, em sete idiomas diferentes e em sete cores.

A primeira folha era azul. Havia escrito que deveria ser rasgada imediatamente. E assim foi feito. A segunda, terceira e quarta folhas eram verde, amarela e branca, nessa ordem. Deveriam ser colocadas em água fervendo, e depois de desfeitas, serem tomadas como um chá. E foi feito.

Após o chá das letras e das folhas do Ribamar, a sessão continuou. Sobravam, então, três folhas escritas. A quinta, de cor laranja, tinha escrito: "Para doutor Frederico, o meu muito obrigado."

A sexta folha era de um amarelo forte, dourado, e havia: "Com todo o meu amor." Era destinada a todas as mulheres da Fazenda. E Fred sentiu um calafrio de ciúmes por sua Ana. Pensou logo que, algum dia, Ribamar a tivesse desejado. E não gostou disso.

Já a sétima, de cor vermelho claro, continha: "Poeta, leia para todos que estão na sala do doutor Frederico. Esta mensagem foi adaptada por mim. Não tive a alegria de conhecer o senhor nem o senhor teve o privilégio de ficar em minha presença por algumas horas e aprender bastante do pouco que aprendi, precisei morrer um dia antes de sua chegada, mas lembro-lhe que foi o senhor quem se atrasou, e foi por causa de Espelho."

O Poeta sentia o sangue esquentar e parar de circular em suas veias, e todos demonstravam temor e tremor. O homem com cara de poucos amigos, de bigodes e sobrancelhas imundas resmungou alguma coisa, mas calou-se envergonhado com o olhar dominador de Fred sobre ele.

- Escutem, então, vou ler o que nos deixou, por escrito, o Ribamar! - disse o Poeta, percebendo os barulhos da afinação e dilatação dos ouvidos de cada um.

"Idnerpa euq es ednerpa odnarre; euq recserc, sogima, oãn acifingis rezaf oirásrevina. Euq o oicnêlis é a polhem atsopser odnauq es evuo amu megabob. Euq rahlabart acifingis oãn os rahnag oriehnid; euq sogima a etneg atsiuqnoc odnartsom o euq; euq so soriedadrev sogima erpmes macif moc êcov éta o Mif. Euq a edadlam es ednocse sárta ed amu aleb ecaf. Euq oãn es arepse a Edadicilef ragehc, sam es arucorp rop ale. Euq odnauq osnep rebas ed odut adnia oãn idnerpa adan; euq a azerutan é a asioc siam aleb an adiv. Euq rama acifingis es rad rop orietni; euq mu ós aid edop res sima etnatropmi euq sotium sona. Euq rivuo amu arvalap ed ohnirac zaf meb à edúas e rad mu ohnirac mébmat zaf. Euq rahnos é osicerp! Euq osson res é ervil! Euq Su'd oãn ebíorb adan me emon od roma; euq o otnemagluj oiehla oãn é Etnatropmi; euq o euq etnemlaer atropmi é a zap roiretni. E, etnemlanif, idnerpa euq oãn es edop rerrom arp rednerpa a reviv."

Terminada a leitura, o Poeta sentou-se, tomou outro trago da cachaça caseira e perguntou sobre o almoço. Fred não sabia nada sobre o almoço, mas mandou providenciar o mais rápido possível, ainda em êxtase interrogativo.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A CARTA

Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.

- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, solteirão. Pra quê uma carta? - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.


E começava um burburinho cheio de especulação barata na casa de Samburá.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse em alta voz, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem passar a carta para cá. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava lá.  

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

UM MORTO QUE LHE SORRI

Ao chegar na fazenda de Fred Samburá, o Poeta percebeu o peito feliz. Assim como em dias de chuva, a alegria ou a tristeza -em formatos de cores e cheiros- envolvia o Poeta por completo, desenhando um sorriso em seus lábios ainda ressecados pela farra com Espelho. E seguiu rumo ao reencontro com o amigo Samburá.

Ao longo do caminho, vindo de encontro ao Poeta, as mercenárias mulheres de preto choravam a alma de alguém. Parou em sinal de respeito, e esperou o cortejo passar. O caixão estava aberto.

O Poeta perguntou quem era o defunto a um garoto que seguia à parte do funeral:

- Quem era o velho?

- Seu Ribamar. Trabalhava aqui há pouco tempo, era muito religioso, estava doente da cabeça e morreu ontem. - respondeu o garoto alegre e excitado por acompanhar um funeral.

O Poeta notou o rosto cinza-amarelo e a expressão fechada dos mortos-tristes. Pensou na tristeza do morto quando em vida. Parou o carro, desceu e acompanhou o funeral.

O choro e as músicas melancólicas o fizeram chorar.

Logo em seguida, uma das mulheres de preto, provavelmente a chefe das carpideiras, disse-lhe bem perto do ouvido e apertando com força o braço esquerdo do Poeta.

- Pode chorar, mas não venha cobrar as suas lágrimas depois. Somos muitas e o dinheiro é pouco. Sem entender, o Poeta quis rir, e sorriu com os olhos. Olhou para o cadáver já esverdeado por causa do Sol.


Em meio aos curiosos, uma menina de sorriso lindo chamou a atenção do Poeta. Ela ria com outras garotas e faziam fuxicos em meio ao cortejo.

O mesmo garoto que foi abordado pelo Poeta, há poucos minutos, reapareceu.

- Garoto, quem é aquela menina do sorriso lindo? – perguntou o Poeta.

- Ah!, é minha prima. Seu nome é Ipsílon! - respondeu o garoto.

- Quê?

- 'Quê' não! Ipsílon...

- Sua prima se chama Ipsílon? - perguntou o Poeta mais descrente do que espantado.

- Sim, seu moço, e quem é o senhor?

- Sou amigo de Samburá. Venho passar uns dias aqui, e agora vou almoçar com ele, em sua casa. Onde poderei ver Ipsílon outra vez?

- À noite. Ela mora na casa do seu Samburá também, respondeu, e saiu.

Olhou, o Poeta, mais uma vez, para o morto. Notou que Ribamar era um cadáver verde-esbranquiçado que lhe sorria. Olhou para os lados, pensou em desmaiar. Voltou os olhos para Ribamar que lhe continuava rindo.

O troller do Poeta nunca seguiu um caminho mais rápido. E feliz. E admirado.

- Essa é boa! Ribamar é um morto que sorriu pra mim. - Pensou o Poeta ainda desacostumado com as surpresas da vida.

sábado, 21 de abril de 2012

É LOUCURA QUE NÃO SE PERCEBE

Depois de oito dias seguidos, os pulmões do Poeta e de Espelho precisavam do ar puro, mas não tinham mais tempo. Precisavam voltar. Espelho para as rezas confusas da sua mãe e do povo daquele lugar. Poeta tinha que seguir o caminho em busca da fazenda de Samburá.

Na estrada, o carro seguia vagarosamente: na mente do Poeta, uma nostalgia pré-existente acariciava-lhe o peito amarelo-saudade por causa de Espelho.

O celular toca.

- Olá! - Poeta? Aqui é Fred Samburá! Você chega quando?

- Em poucas horas. Chego para o almoço.

- Poeta, você chega para o almoço de hoje?

- Sim... Para o almoço de hoje! – responde, rindo com alegria, o Poeta.

O celular toca outra vez. Um número nunca visto antes. O Poeta abre a janela de seu veículo, e lança o celular com a força de muitas raivas guardadas.

- Por que você fez isso? – Grita, apavorada, Espelho. - Poeta, você é um louco.

Espelho e Poeta faziam o silêncio mais gritante que poderiam imaginar. O tempo e o carro deslizavam. O veículo foi perdendo velocidade. E foi parando, parando, até chegar em frente ao boteco do homem gordo de traseiro estreito. Antes de Espelho sair, o Poeta segurou-a pelas mãos.

- Por que seu nome é Espelho?

- Porque, em mim, você vê a si mesmo.

- Espelho, espere!

- Diga depressa! Eu tenho que ir. Tenho minhas dores para cuidar. Cuide das suas. Encontre Samburá.

- Espelho, eu sou louco?

- Muito pouco... É loucura que não se percebe.

E Poeta seguiu pela estrada, rumo à fazenda de Fred Samburá.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

REMY

Ainda no caminho para Fortim, onde ficava a fazenda de Fred Samburá, havia um castelo-pousada. Ali, Poeta e Espelho fizeram uma refeição e pediram um quarto.

O Poeta pagou adiantado o período da estada, e Espelho descobriu uma fonte de água mineral que virava lama com o toque das mãos humanas.

O gerente do castelo-pousada, um homem negro com a aparência de sessenta anos, explicou para Espelho que não se deve tocar a água, a não ser diretamente com a boca.

Remy era o proprietário, e o cargo era passado de pai para filho. Foram, assim, os últimos seiscentos anos. Espelho admirou-se da mentira contada pelo negro de smoking e de pés descalços, e riu constrangida por não acreditar em história mais absurda.

Sabia, o Poeta, da lenda do castelo-pousada, e dirigindo-se ao educado homem perguntou-lhe sobre os arquivos da pousada. "Encontram-se no vigésimo-primeiro andar", respondeu Remy, virando-se e cumprimentando o Poeta. "Como proprietário do castelo, faço questão de levá-los até lá, e mostrar-lhes nossa papelada e escritos, inclusive com pinturas de nossas
guerras contra os colonizadores".

- Como pode ficar no vigésimo-primeiro andar, se o castelo termina no terraço, em um baixo terceiro andar? - questionou, já irritada, Espelho.

- Nossos aposentos ficam todos abaixo do nível do mar. O subsolo é um local agradabilíssimo, a temperatura não passa dos vinte e um graus, a oxigenação é perfeita e pura, entre outros fatores que influenciam diretamente em nosso organismo, nos tornando jovens e saudáveis. Por isso, enterramos nossos mortos. Os antigos acreditavam que assim a vida eterna seria mais interessante...

- Mas... - tentou interromper Espelho, na fronteira entre a irritação e a curiosidade.

- Quantos anos você acha que eu tenho?

- Uns sessenta anos... - respondeu Espelho.

- Esta é a idade da minha neta, a primeira neta!, respondeu e fechou os olhos por alguns segundos, obviamente trazendo à mente a imagem da velha que, para ele ainda era uma garotinha.

- Bem, a conversa está agradável, mas precisamos descansar um pouco, senhor Remy. - Falou o Poeta.

- Oh, sim, claro! - entendeu o gerente.

No quarto, enquanto Espelho tomava banho e se esfregava com sabonetes e cacos de telha, o Poeta lia, em um folheto do castelo, a biografia dos antecedentes do gerente. Remy era um negro de ascendência francesa, tinha uma fala aveludada e os olhos dourados, que brilhavam no escuro.

Remy não dormia à noite, passava o escuro noturno a comer gafanhoto com chantilly, e nunca sentiu falta de uma hora de sono, pois jamais dormira em toda a sua vida. O homem tinha cento e dezoito anos, e, certamente, em dias maus, aparentava ter, no máximo, metade da idade real.

Quando não comia seus insetos com cremes, Remy tinha a mania de transcrever livros, de trás para frente, não somente as páginas mas também as letras. Isso o faz falar em um português totalmente incompreensível.

O cheiro de tapioca invadia o quarto do Poeta.

- O cheiro das coxas de Espelho, pensou.

Espelho saiu do banho. Os esfregões com a telha e os sabonetes baratos deixaram as carnes da morena deliciosamente libidinosas e excitantes.

A partir daquele instante, Espelho só largou o Poeta ao fim de oito dias. Com Espelho, o Poeta aprendeu a fazer sexo por oito dias sem parar, sem a preocupação com necessidades mais baixas, como dormir, comer ou beber.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

ESPELHO

O velocímetro do troller do Poeta ultrapassou os duzentos quilômetros por hora. Desligou o ar-condicionado, abriu as janelas e deixou o vento entrar e dançar conforme a música do tempo.

- Vento! - disse o Poeta - Lave-me de mim mesmo...

Ouviu-se, então, um fardo leve, em forma de sopro:

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

O Poeta se fez novo outra vez. A febre e as amargas lembranças de Arimatéia deixaram-no. Recordando-se apenas da sensualidade aprovada e provocada pela menina de chupeta que rezava o terço. Viu, em pensamentos, suas coxas cores de jambo, os seios que se mostravam sem pudor, a boca carnuda, os olhos apetitosos à procura do dono da fumaça.

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

A picape parou de forma abrupta, obedecendo fielmente o controle mecânico imposto pelo Poeta. Deu retorno na estrada, e voltou até a casa do homem gordo, da velha que rezava em húngaro, do cheiro de tapioca nas coxas da morena-jambo.

Ao parar o veículo em frente ao boteco, o homem gordo olhou apreensivo para o Poeta, a mulher entoou cânticos em outra língua, e a menina mordeu a chupeta até lhe doer cada dente.

- A menina vem comigo! - disse o Poeta.

- Deixe estar. Veremos o que acontece. O senhor só leva a menina se o Deus dos velhos sofredores assim permitir. - Autoritário com o Poeta e submisso ao futuro, falou o gordo de traseiro estreito.

Enquanto isso, Arimatéia e a velha jogavam água benta fervida nas carnes da menina; outras velhas desdentadas e de bigodes grossos, com braços erguidos, cantavam o miserere. Dois velhos que não se banhavam há muito -em sinal de penitência arcaica- faziam suas preces: o primeiro, mais barbudo do que o segundo, lia, em voz eloquente, a bíblia em grego antigo; o segundo, mais escuro do que o primeiro, chicoteava a si próprio, ora olhava para a menina, ora para as velhas, ora para a faca perpetuada nas costas de Arimatéia.

A menina caiu no chão, gritou e vomitou o novelo de cabelos compridos já expurgados, momentos antes, pelo Poeta. Saca o terço de mármore do vestido curto, e quebra-o em dezenas de pedaços.

Silêncio total. Os velhos e as velhas saem cada um para suas casas, mas antes, Arimatéia limpou o sangue do velho sujo e negro que se açoitava, deixando-o limpo para um próximo exorcismo.

A menina entra no troller do Poeta, olha para trás e, cuspindo restos de novelo, grita à velha e sofrida mãe:

- Volto em oito dias.

O Poeta dá a partida e segue para a fazenda de Samburá. Vira-se para a menina, e, sentindo o cheiro de tapioca que vinha de suas coxas, pergunta-lhe o nome. Ela responde: "Espelho. Meu nome é Espelho".

quinta-feira, 12 de abril de 2012

FEBRE

A manhã avançava rápida, e os ponteiros do relógio do Poeta seguiam essa sangria sem nó. Ainda com o gosto de vinho e de boca nos lábios, parou em uma venda a fim de tomar um café com leite e comer umas tapiocas.

Entrou. Sentou. Pediu. O dono do boteco-de-beira-de-estrada era um gordo de traseiro estreito, e que tinha olhos coloridos.


Enquanto comia, o Poeta sentiu a febre chegar em seu corpo.

- Isso lá são horas para pegar uma febre? - pensou, fatigado e incomodado.


Seus pés estavam começando a pesar, e ficou com medo de nunca mais sair dali, pois raízes brotavam do chão e se enroscavam nos pés do Poeta.

A filha do homem gordo saiu por uma porta azul, mas verde de tão antiga. Era uma moça bonita, na alegria de seus dezessete anos. Trazia à boca uma chupeta de bebê. O Poeta não estava sentindo-se muito bem, e como seus pés recomeçavam a ficar livres, foi lavar o rosto e as mãos. A febre e o calor do café afetaram-no: saía fumaça da testa do Poeta; uma fumaça espessa e gordurosa.

O gordo chamou pela mulher e a filha que tinha a chupeta entre os dentes. Sem tirar os olhos do Poeta, cochichou alguma coisa inaudível para as duas, que entraram rapidamente para dentro de casa, e logo-logo voltaram com cera de carnaúba nas mãos e uma garrafa com água suja. A mulher cantava algum hino cristão em húngaro.

Chamou a atenção do Poeta, o homem gordo, que apontou para uma cadeira de balanço, e fez, autoritariamente, sinal para que sentasse. Obediente e estranhamente direcionado por estranhos, o Poeta sentou e ficou a esperar as ações dos donos do boteco. A filha do gordo chamou por Arimatéia, aos gritos, pela janela do bar. O Poeta pôde escutar a resposta de Arimatéia:

- Tô chegando!

Arimatéia, místico do lugarejo, autodeclarava ser descendente de índios e escravos que falavam com mortos, mas tornaram-se cristãos. O misto de tudo isso deixava Arimatéia no limbo das religiões.

A fumaça espessa e gordurosa que saía da testa do Poeta enchia o ambiente de espanto. Arimatéia chegou sorrindo e rezando, e trazia, horrivelmente, uma faca enfiada nas costas. Pelos olhos do Poeta, Arimatéia entendeu a pergunta e respondeu:

- Em 1908, essa faca me foi enfiada nas costas por um inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo. A promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo seria a minha salvação, mas traria essa faca comigo, para que todos possam ver e crer.

A cada dois minutos, Arimatéia benzia-se, e, de quando em quando, após benzer-se, beijava as costas da mão direita, erguia os olhos, e parecia que enxergava alguma coisa ali.

O Poeta percebeu que as costas de Arimatéia tinham ataduras, pois o sangue não parava de descer. A ferida nunca cicatrizou. A mulher do homem gordo, com as mãos cheias de cera de carnaúba, apertava as têmporas do Poeta. Quanto mais a velha apertava, mais a fumaça saía, e o sangue das costas de Arimatéia escorria com mais velocidade, até formar uma pequena poça de cor de azeite no chão.

A menina da chupeta, que já havia acendido uma vela, estava ajoelhada, rezando o terço e mordendo com mais força a borracha da chupeta. A fumaça da vela misturou-se à fumaça do Poeta. Quando a vela chegou ao fim, o Poeta escarrou um novelo de cabelos compridos, e, instantaneamente, a fumaça parou de sair de sua testa. A febre também o abandonou. Sentindo-se melhor, o Poeta agradeceu sem mesmo entender o por quê de tudo aquilo.

Com a alegria e a aridez de um arcipreste, Arimatéia saiu, mas antes se benzeu e benzeu a todos. Desta vez, não beijou as costas da mão, e sim deu cinco beijos rápidos na ponta de cada dedo da mão direita.

O Poeta pagou o que devia. Saiu. E sem entender, mas aceitando a condição de poeta, dirigiu-se à casa de Samburá.


Outra vez, o Poeta teve certeza da alegria nos dias seguintes, e a confirmação era a fumaça que lhe saíra da testa, e pela faca nas costas de Arimatéia.

- Estranho. Esse mundo é tão estranho... Não vale a pena tentar entendê-lo: ou se entende ou se vive de amores e letras - falou em alta voz, o Poeta.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

CHEIRO DAS BORBOLETAS

A caminho da fazenda de Fred Samburá, o Poeta, na velocidade de seu 4x4, sentia os ventos em seus cabelos a açoitar não somente os pelos fartos mas também os neurônios.

Um sorriso carmesim e adocicado repousava em seus lábios quentes. Quem lhe via de fora, não podia apostar nos pensamentos do Poeta: uma libertinagem pra lá de sacana alternava com a lembrança de cânticos de sua Primeira Comunhão.

Na paz da avenida Litorânea -a estrada para a fazenda do Samburá-, o Poeta notava os calafrios motivados pela saudade precoce dos dias que estavam por vir. A certeza de alegria nos dias seguintes lhe era confirmada pelo cheiro das borboletas atropeladas e queimadas pelo troller.

Resolveu fugir da saudade e da ansiedade angustiosa, e, para tanto, decidiu lembrar. Lembrar de um passado já enterrado e vívido, onde Samburá era tão-somente um amigo triste que cheirava a peixe.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

CABELOS REBELDES

O vento e o Sol que há muito inundavam o rosto do Poeta somado ao barulho do despertador o tirou da cama, sobressaltado e, ironicamente, decepcionado e feliz.

- Que sonho! - disse o Poeta, passando as mãos pelos cabelos rebeldes.

Léa, a gata, espreguiçava-se à janela e lambia-se, como fazem os gatos. Depois de um banho frio e rápido, o Poeta encheu diversas travessas de ração, e deixou ligado um sistema de abastecimento de água, para que a gatinha não tivesse sede, enquanto passava os dias na Fazenda do Fred Samburá.

- Água e comida não faltarão, Léa! - falou acarinhando e recebendo, de volta, o carinho ronronado do animal de estimação.

O Poeta pegou a mochila, as chaves do carro, e partiu para a fazenda de Fred Samburá, ainda com o cheiro de chuva da morena e a visão da ruiva de tão linda.

Ao sair de casa, não pôde notar uma corrente de chumbo pesada no meio da sala nem os cacos de vidro da taça que, antes, sob a cama estava cheia.

terça-feira, 3 de abril de 2012

PANTUFAS NO CHÃO

Espantado e ansioso, o Poeta acordou no meio da madrugada. Teve um sonho estranho, sonhou com montanhas de sorvete e geléia que não acabavam jamais. Levantou e foi direto à cozinha tomar água. Pegou um livro para ler, voltou à cama. Ao lado, viu que dormia Léa, a gata, e em um gesto carinhoso e automático passou a mão sobre o felino, que ronronava e dormia.

Acomodando-se, voltou os olhos ao livro, e leu até perder-se no sono que antes tinha perdido. Não havia notado que, sob a cama, ainda havia uma taça de vinho. Dormindo, o Poeta sonhou um sonho com cheiros dourados e cores surdas. Caminhava descalço, com suas pantufas presas à cintura por uma corrente de chumbo, muito estranho e familiar ao mesmo tempo. Chegando em seu aposento, deliciosamente nuas, duas mulheres o esperavam.

A primeira, uma morena que lembrava o cheiro da chuva; a segunda era ruiva de tão linda, e dela se ouvia o barulho do luar. O quarto, macio e repleto de incenso e penumbra, logo o excitou. A morena com cheiro de chuva tinha uma taça de vinho e, após sorver um pouco, entregou à ruiva de tão linda que, após fazer o mesmo, passou-a ao Poeta. Ao receber o vinho em suas mãos, as
correntes com as pantufas foram ao chão, sem o barulho do pesado chumbo. Estranho, pensou o Poeta.

Bebeu o vinho até o fim, de um gole só, e, enquanto a ruiva tomava de suas mãos a taça, via a morena excitando-se, tocando-se e ronronando num ritmo inaudível de feérica masturbação. A taça caiu das mãos da ruiva, e a maciez do quarto não a impediu de se espatifar no chão. Completamente nu, o Poeta beijava e era beijado, os corpos dos três dançavam numa sincronicidade perfeita, quebrando o silêncio com a surdez do ouro, entrando e saindo de aposentos sem serem notados, com os passos firmes, porém calados -como os dos felinos.


O Poeta sentiu o êxtase da morena, e a beijou mais forte, fazendo-a tremer de medo e de prazer, como nunca sentira antes. Deixou-a em um canto do quarto para que ela recuperasse suas força e consciência. O falo do Poeta penetrou a ruiva, depois de lamber seu sexo, e esta sorriu como sorriem os serafins. As pernas da ruiva de tão linda, firmes e cheirosas, acompanhavam o mesmo compasso do Poeta, e ele sentiu o momento em que a moça começou a desfalecer em seus braços, soltando um hálito tão visivelmente lindo e cheio de cores, que foi capaz de fazer, outra vez, a morena masturbar-se enquanto o Poeta não vinha.

sexta-feira, 30 de março de 2012

VINHO NOVO EM ODRE VELHO

Cedinho da manhã, o seu destino era a fazenda do Samburá. Enquanto arrumava a mochila, escutava Pink Floyd e bebia vinho. O som progressivo apressava o término de cada cálice. Ele sabia disso, e sorria. Os cálices esvaziavam e enchiam como o vento dentro de uma casa arejada.

Um banho quente seria ideal.

Trocou Pink Floyd por Los Hermanos, e baixou o volume. Completou o último cálice como as prostitutas preparam o sexo. Na hora de dormir, mesmo sabendo da viagem para a fazenda do Samburá, fechou os olhos como não precisasse abri-los ao acordar.

Dormiu nu. Juntou-se ao Poeta, na mesma cama, mais para velar seu sono do que para dormir, Léa, a gata. Achara na rua há anos, a morrer de frio e fome.

Sob a cama, a última taça de vinho. Intacta. Era um vinho novo em uma taça usada.

quinta-feira, 29 de março de 2012

AROMAS E SABORES

Em casa, o Poeta pôde ser livre, quase tanto o é nas ruas. Um pouco mais à vontade, é claro. Despiu-se das roupas e das idéias, menos do sentimento de que na fazenda do Samburá seria bom.

A lembrança das botas veio vívida, e as imaginou olhando para o mar. Ou sendo vistas por ele. Jamais pensaria que alguém, um dia ou uma noite, as levasse consigo. Não! Os poetas não pensam nisso. Já lhes bastam as tragédias pessoais.

Abriu uma garrafa de vinho, bem devagar, quase como um deus que faz suas preces a outro deus. Pôs em um cálice, uma pequena porção do líquido. Cheirou e cheirou (o cheiro lembra hálito de mulher virgem). Provou e provou (o sabor tem o gosto das bocas femininas que tanto gosta de beijar).

- É por isso que gosto dos vinhos... - pensou o Poeta.

Completou o cálice, e absorveu aromas e sabores, quase como um deus que faz suas preces a outro deus.

quinta-feira, 22 de março de 2012

AS BOTAS DO POETA

Saiu descalço, o Poeta, do mar. Ali mesmo, no chão de areia, sentou-se.
Neste momento invejou os fumantes, e esperou o tempo passar. Depois de seco e salgado, calçou-se de mundo, deixando suas botas na areia.

Quem o viu sair por aí, podia apostar que seus caminhos eram incógnitos.
O Poeta sabia cada esquina que deveria passar.

Os cabelos errantes lhe faziam lembrar o último amor, de tão frio e tão duro.
As mãos, em cada bolso da calça, lembravam-no do amor atual: quente e macio, porém separados.

Olhou para o relógio. Viu as horas só por olhar. Entrou no bar de
conhecidos, que logo começaram a acenar. Falavam de muitos fatos e coisas.

- Amanhã será dia de loucura, eu sinto desde já. Visitarei a casa de
Samburá. Anotem as suas alegrias e tristezas em guardanapos já usados. Levarei
para ele, e as guardará como a carta de um pai ausente.
- Poeta, vai mesmo passar uns dias com o Samburá?
- Sim. Ele passou muitos dias conosco...
- Ora, ele estudava com a gente!
- Sim! Retifico: ele passou muitos anos conosco...
- Poeta, você esqueceu os sapatos?
- Não. Claro que não! Se os esquecesse seria louco, e vocês teriam a
autorização para fazerem a minha internação. Deixei-as, porque quis, no meio do caminho, na areia do mar, olhando para as ondas.

Risadaria em todos os seis cantos do bar: à esquerda e à direita, em
cima e em baixo, dentro e fora.

E o Poeta saiu. Deu um adeus tão pesaroso como quem dá um cheque que não
quer pagar. Mas ninguém notou. Os poetas mentem formidavel e elegantemente bem.

sexta-feira, 16 de março de 2012

SAMBURÁ

Chamávamos o Frederico de Fred, depois passamos a chamá-lo de Samburá.
Isso porque peixe era a principal refeição do Samburá. Seu pai era lagosteiro,
possuía três barcos de pesca e uma parafernália tecnológica -em cada barco-
para melhor achar o crustáceo.

Pois bem, o Samburá tinha alguns problemas. Além de comer peixe, ele
trabalhava com o pai. Tinha sempre o cheiro doce-cobre dos peixes: sempre
impregnado em suas roupas, cabelos, pele, hálito, carro, casa, em tudo.

Quer saber o dia do aniversário do Samburá? 28 de fevereiro. Isso lhe
garante, na astrologia, ser do signo de peixes. Já pensou? Eu não creio em
astrologia, mas que isso vale nessa história, ah!, vale sim!

Outras: quando íamos ao McDonalds, era exatamente o McFish o pedido do
Samburá; pizzas? Sempre de atum.

Pois bem, o tempo não perdoa. O Samburá cresceu e deu continuidade aos
trabalhos do pai: as lagostas. Com um empréstimo no BNB somado às economias de
alguns anos, comprou e montou uma fazenda em Fortim, litoral leste do Ceará.
Viveiros de camarão. O nome da fazenda? 'Recanto do Samburá'. Bem sugestivo,
não?

Com o cheiro que ele tinha, sempre encontrou problemas em arranjar
namoradas. As casas de massagem eram os refúgios sexuais do Samburá, enquanto
os refúgios emocionais ficavam a nosso cargo mesmo, afinal de contas, éramos os
seus amigos. Depois passou a comer as filhas dos pescadores. Até que casou com
a filha de um empregado, de um pescador que cheirava a peixe também.

Por que eu escrevi essa história? Explico. Recebi um emeio no dia 12 de
agosto, dizia assim:

"Poeta, Pôxa, cara, você é difícil de encontrar. Consegui seu
e-mail com (...) Faz 5 anos que casei, meu primeiro filho nasceu semana
passada. Terei um Dia dos Pais de verdade!!! (...) Anota os meus telefones
todos (liga a cobrar, viado!!!), vamos combinar uma visita aqui em casa, passar
um final de semana na fazenda. (...)

Atenciosamente,

Fred Samburá"

É. Deu saudade do jeitão melancólico-quieto-metido-a-feliz do Fred,
sempre roendo as unhas e as carnes dos dedos, como se aquilo fosse remédio para
alguma coisa. Talvez fosse mesmo.


O cara com cheiro de peixe que, no colégio, sempre -sempre mesmo- terminava as provas antes de todo mundo, e conseguia boas notas. O amigo do mar que ia conosco aos shows, e, provavelmente por sentir-se um estranho -um verdadeiro peixe fora d'água, permanecia eternamente de braços cruzados a olhar as bandas tocarem -mesmo quando essas bandas eram Titãs, Paralamas do Sucesso, Cazuza & Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros do Hawai... Ah!, lembro de um show do Roberto Carlos, quando o Samburá deu a sua primeira e única reação: sorrir, dançar e cantar a música "Verde e Amarelo". Creio que aquela manifestação ficará sempre na memória de nossa turma. Feliz anos 1980.

O AVESSO DOS PONTEIROS

O relógio do Poeta marcava duas e trinta e seis da manhã. O ponteiro dos segundos seguia os ritmos perfeito, circular e anacrônico. Ora, cada minuto conseguia, amiúde, conter sessenta segundos, por horas e dias a fio. Essa sincronia treinada, sem erros, sem mudanças, sem tempestividade, inundou de vazio o coração desacertado do Poeta.

Desceu, o Poeta, no rumo da praia, porque é lá que fica o mar. À noite, o mar é muito mais lindo: possui a aparência dos deuses invisíveis, e em sua água sacra só se entra com os pés nus no chão. Com uma lata de coca-cola na mão, saiu por aí, a pé, feito conquistador de prostitutas ricas.

quinta-feira, 15 de março de 2012

ÁDVENA

Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as
luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de
cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em
mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o
aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum
para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do
mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem
água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que
eu não conseguia lembrar.

O corte em minha mão era violento demais para que eu
pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém
perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em
público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das
ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença
era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim,
cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e
grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí.
Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os
momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma
mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia
ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a
fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso
não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo
do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o
era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como
são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que
qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na
boca da gente.
Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra
vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos.
Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos
alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba
crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde,
mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no
poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar
várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo
gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí
de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.

sexta-feira, 2 de março de 2012

MINHOCA NA CABEÇA

Pastor evangélico, engenheiro, cantor, compositor e escritor, o senador Marcelo
Crivella ganhou a missão de multiplicar os peixes do governo Dilma Rousseff. É o
terceiro a ocupar o Ministério da Pesca nos pouco mais de um ano da atual
gestão. Assim como várias na Esplanada, a pasta não tem outra função que não
arrebanhar apoios ao projeto hegemônico de poder petista.

O ministério foi criado no governo Lula e, durante a gestão dele, teve como
finalidade acomodar políticos petistas derrotados em eleições. Foi assim com
José Fritsch e Altemir Gregolin, ambos catarinenses e ambos castigados pelas
urnas, marca também de Ideli Salvatti, ministra da Pesca já na gestão Dilma.

O ministro recém-defenestrado, Luiz Sérgio, não figura na lista de sulistas
abatidos pelo voto, mas na de fracassados: em pouco mais de um ano, conseguiu
ser demitido duas vezes. Agora, por telefone; antes, da Articulação Política,
por insuficiência de desempenho.

De Fritsch ao senador carioca do PRB, todos os ministros da Pesca têm uma
característica comum: não entendem nada do assunto. Para cuidar dos pescados do
Brasil, o PT escalou, nesta ordem, um cientista político, um veterinário, uma
física, um metalúrgico e, agora, um engenheiro civil. Nesta rede, peixe não
vem.

Crivella deixou claro ontem que, desta missa, não sabe nem um terço: "Vou
lhes dizer, com humildade. Eu nem sei colocar uma minhoca no anzol. Na verdade,
estou indo para aprender", disse ele, em entrevista a uma rádio. Ministério não deveria servir para pós-graduação, mas o da Pesca nem a isso se presta.

Desde que a pasta foi criada por Lula, o desempenho pesqueiro do país declinou. Sua
balança comercial tornou-se deficitária a partir de 2006. No ano passado, para
cada dólar exportado no setor, o Brasil importou seis: o rombo foi de US$ 1
bilhão, o dobro de dois anos antes.

A despeito de o orçamento da Pesca ter crescido 831% desde 2004, não houve reflexo
positivo na produção nacional, que só aumentou 25% até 2009 (dado mais recente
disponível), segundo O Globo. O Brasil é hoje apenas o 18º principal produtor no ranking
mundial do setor.

Mas a Pesca é apenas uma das irrelevâncias na Esplanada de quase 40 ministérios
petista. A lista traz, ainda, pastas como a de Política para as Mulheres e a de Igualdade
Racial, para ficar apenas nos casos mais gritantes.

Têm em comum o fato de que "se transformaram no decorrer dos anos em pesadas
estruturas burocráticas que têm custo mais alto do que o orçamento de investimento que administram", como mostrou o Correio Braziliense há dez dias.

"As despesas com pessoal e gastos de manutenção do Ministério da Pesca e Aquicultura
e das secretarias de Política para as Mulheres, de Igualdade Racial e de
Direitos Humanos representam quase o dobro dos recursos de investimentos",
informou o jornal. Neste ano, enquanto a folha de pagamento dos funcionários e a
despesa corrente destes órgãos consumirão R$ 515 milhões, para investimentos
estão reservados apenas R$ 272 milhões.

Na Pesca, por exemplo, serão gastos R$ 7,6 milhões em locação de imóveis, valor que
corresponde a todo o orçamento anual da pasta para o programa de prevenção de
doenças em animais aquáticos. Já o pagamento de funções comissionadas consumiu
R$ 13,2 milhões em 2011, superando o valor destinado ao monitoramento da
atividade pesqueira nacional.

Fica evidente que o que Dilma Rousseff transferiu anteontem para o partido evangélico
não foi uma estrutura destinada a cuidar de algum aspecto da vida nacional. Foi um cabide que terá R$ 154 milhões de orçamento neste ano, não apenas para ser preenchido com
apaniguados como também para distribuir, por exemplo, o chamado seguro-defeso -
a "bolsa pescador" que o governo do PT multiplicou por cinco.

A escalação de Crivella para comandar a Pesca dá ares de galhofa à forma com que o
petismo partilha o poder e compra apoios à sua estratégia hegemônica. Os aliados
já começaram a reclamar das migalhas que lhes sobram. Mas quem perde mesmo é a
sociedade brasileira, que só paga a conta de quem governa com minhoca na
cabeça.

Fonte: Instituto Teotônio Vilela

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ô, MESSIAS! Ô, MESSIAS!

Quando ouço um jornalista defender o “Marco Regulatório da Mídia” tão sumariamente escancarado pelo Congresso Nacional do PT, penso imediatamente na dor em que este colega sentiu ao ver o “guerreiro do povo brasileiro” ser exposto nas páginas da revista Veja.

Não há o que debater: as viúvas de Lula e de Dirceu, tal quais as viúvas de Don Juan de Marco, existem para defender o amor que sentem, e quanto a isso, não há negociação. É metafísico.

Chegam ao ponto de citar a Constituição (que o petê se negou a assinar em 1988) para defender o que não se pode defender. Comparam o Brasil com países de “primeiro mundo”, mas esquecem que “lá” seus pupilos seriam algemados sem a “presunção da inocência”, ficariam presos, seriam julgados, e, certamente, condenados por crimes contra o Estado e outras mazelas descritas no Código Penal.

Esquecem que ao defender a regulação da mídia, estão, nas entrelinhas, chamando o povo (que dizem defender) de burros, de idiotas. Sim, de idiotas!

Explico: é porque todo petista, e seus mosqueteiros, acham que o somente o Governo é capaz de REGULAR a mídia, e dizer o que é bom para cada cidadão ler, ouvir ou ver. Insistem em invadir a privacidade de cada família, e dizer: “Papai, mamãe, este programa, só para seus filhinhos pequeninos”. “Papai, mamãe, este programa, só para o casal, ta?”. “Atenção, papai e mamãe, esta revista ninguém em casa pode ler, entenderam bem?”. E por aí, vai, só que de uma forma beeeeem mais sutil. Falam de “conglomerados”, mas o “conglomerado” do Governo pode.

Ora bolas! Que o Governo vá cuidar da Saúde, da Educação, da Segurança, e deixe que cada cidadão decida o que quer ler, ouvir, ver.

A Regulação deve ser feita pela sociedade, por cada cidadão. Se um veículo não presta, não serve, se ele é “DO MAL”, que seja exorcizado pelo exercício da cidadania, da democracia: “quero ler, quero ouvir, quero ver, ou não quero ler, não quero ouvir, não quero ver”.

E tem gente que mistura alho com bugalho, ao falar da regulação da mídia com Conselho de Comunicação Social. Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa.

Depois eu virei com outro texto aqui sobre o que penso da Regulação da Mídia, mas lembro que o PT nem abordou a regulação dos gastos com propaganda... Nem pensar, não é mesmo?
O cidadão entende o que é ÉTICA. O cidadão pode até não saber definir, mas ele entende. Quem subestima o cidadão brasileiro é o petê.

E por falar em ÉTICA, lamento muito o artigo do jornalista Messias Pontes, no site do Sindjorce.
Caro Messias, é ético o senhor utilizar o espaço do Sindicato dos Jornalistas para defender a SUA OPINIÃO?

É ético para o senhor defender a opinião ULTRA-PARTIDÁRIA DO SINDJORCE QUE SERVE A PARTIDOS POLÍTICOS AO INVÉS DE SERVIR À CATEGORIA DOS JORNALISTAS?

Eu apoio, pelo bem da democracia, da dicotomia, da dialética e até da hermenêutica, que o senhor dê a sua opinião em espaços dos jornais de nossa cidade, em blogues, vá falar em programas de rádios, de tevês, mas USAR O ESPAÇO DO SINDJORCE PARA EMITIR OPINIÃO PARTIDÁRIA, EU NÃO ACHO DIGNO DE UM REPRESENTANTE DA FALIDA COMISSÃO DE ÉTICA DO SINDJORCE.

QUALQUER JORNALISTA PODE USAR ESTE ESPAÇO OU ELE É PRIVATIVO DA DIRETORIA DO SINDJORCE E SUA BASE ALIADA?

OS REPRESENTANTES DO #MELHORASINDJORCE TAMBÉM PODEM USAR?

E por falar em #melhorasindjorce, caro Messias, o senhor acompanhou o que vem acontecendo com o Sindjorce?

Soube o que houve com o presidente Clayson Martins? Soube que foi atacado fisicamente, que fez o boletim de ocorrência, exame no IML?

O que o senhor pensa sobre isso, já que é membro da COMISSÃO DE ÉTICA DO SINDJORCE?
O senhor acompanhou o que houve no Eejac? Viu as manobras da stalinista que, de fato, toma de conta do Sindjorce? Emitiu alguma opinião sobre isso?

Eu não vi, nem ouvi, nem li. Mas o senhor preferiu usar o espaço do Sindjorce para manifestar opinião político-partidária, ao invés de promover o debate de ideias no Sindicato. Eu lamento muito.

No entanto, caro Messias, deixo claro, que não sou contra sua opinião. Sou contra o uso de sua opinião no espaço do Sindjorce, sem dar espaço para quem pensa diferente. Já que este governo que o senhor parece defender é o governo dos diferentes. "Diferentes, desde que sejam iguais a mim". Entendi.