sábado, 21 de abril de 2012

É LOUCURA QUE NÃO SE PERCEBE

Depois de oito dias seguidos, os pulmões do Poeta e de Espelho precisavam do ar puro, mas não tinham mais tempo. Precisavam voltar. Espelho para as rezas confusas da sua mãe e do povo daquele lugar. Poeta tinha que seguir o caminho em busca da fazenda de Samburá.

Na estrada, o carro seguia vagarosamente: na mente do Poeta, uma nostalgia pré-existente acariciava-lhe o peito amarelo-saudade por causa de Espelho.

O celular toca.

- Olá! - Poeta? Aqui é Fred Samburá! Você chega quando?

- Em poucas horas. Chego para o almoço.

- Poeta, você chega para o almoço de hoje?

- Sim... Para o almoço de hoje! – responde, rindo com alegria, o Poeta.

O celular toca outra vez. Um número nunca visto antes. O Poeta abre a janela de seu veículo, e lança o celular com a força de muitas raivas guardadas.

- Por que você fez isso? – Grita, apavorada, Espelho. - Poeta, você é um louco.

Espelho e Poeta faziam o silêncio mais gritante que poderiam imaginar. O tempo e o carro deslizavam. O veículo foi perdendo velocidade. E foi parando, parando, até chegar em frente ao boteco do homem gordo de traseiro estreito. Antes de Espelho sair, o Poeta segurou-a pelas mãos.

- Por que seu nome é Espelho?

- Porque, em mim, você vê a si mesmo.

- Espelho, espere!

- Diga depressa! Eu tenho que ir. Tenho minhas dores para cuidar. Cuide das suas. Encontre Samburá.

- Espelho, eu sou louco?

- Muito pouco... É loucura que não se percebe.

E Poeta seguiu pela estrada, rumo à fazenda de Fred Samburá.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

REMY

Ainda no caminho para Fortim, onde ficava a fazenda de Fred Samburá, havia um castelo-pousada. Ali, Poeta e Espelho fizeram uma refeição e pediram um quarto.

O Poeta pagou adiantado o período da estada, e Espelho descobriu uma fonte de água mineral que virava lama com o toque das mãos humanas.

O gerente do castelo-pousada, um homem negro com a aparência de sessenta anos, explicou para Espelho que não se deve tocar a água, a não ser diretamente com a boca.

Remy era o proprietário, e o cargo era passado de pai para filho. Foram, assim, os últimos seiscentos anos. Espelho admirou-se da mentira contada pelo negro de smoking e de pés descalços, e riu constrangida por não acreditar em história mais absurda.

Sabia, o Poeta, da lenda do castelo-pousada, e dirigindo-se ao educado homem perguntou-lhe sobre os arquivos da pousada. "Encontram-se no vigésimo-primeiro andar", respondeu Remy, virando-se e cumprimentando o Poeta. "Como proprietário do castelo, faço questão de levá-los até lá, e mostrar-lhes nossa papelada e escritos, inclusive com pinturas de nossas
guerras contra os colonizadores".

- Como pode ficar no vigésimo-primeiro andar, se o castelo termina no terraço, em um baixo terceiro andar? - questionou, já irritada, Espelho.

- Nossos aposentos ficam todos abaixo do nível do mar. O subsolo é um local agradabilíssimo, a temperatura não passa dos vinte e um graus, a oxigenação é perfeita e pura, entre outros fatores que influenciam diretamente em nosso organismo, nos tornando jovens e saudáveis. Por isso, enterramos nossos mortos. Os antigos acreditavam que assim a vida eterna seria mais interessante...

- Mas... - tentou interromper Espelho, na fronteira entre a irritação e a curiosidade.

- Quantos anos você acha que eu tenho?

- Uns sessenta anos... - respondeu Espelho.

- Esta é a idade da minha neta, a primeira neta!, respondeu e fechou os olhos por alguns segundos, obviamente trazendo à mente a imagem da velha que, para ele ainda era uma garotinha.

- Bem, a conversa está agradável, mas precisamos descansar um pouco, senhor Remy. - Falou o Poeta.

- Oh, sim, claro! - entendeu o gerente.

No quarto, enquanto Espelho tomava banho e se esfregava com sabonetes e cacos de telha, o Poeta lia, em um folheto do castelo, a biografia dos antecedentes do gerente. Remy era um negro de ascendência francesa, tinha uma fala aveludada e os olhos dourados, que brilhavam no escuro.

Remy não dormia à noite, passava o escuro noturno a comer gafanhoto com chantilly, e nunca sentiu falta de uma hora de sono, pois jamais dormira em toda a sua vida. O homem tinha cento e dezoito anos, e, certamente, em dias maus, aparentava ter, no máximo, metade da idade real.

Quando não comia seus insetos com cremes, Remy tinha a mania de transcrever livros, de trás para frente, não somente as páginas mas também as letras. Isso o faz falar em um português totalmente incompreensível.

O cheiro de tapioca invadia o quarto do Poeta.

- O cheiro das coxas de Espelho, pensou.

Espelho saiu do banho. Os esfregões com a telha e os sabonetes baratos deixaram as carnes da morena deliciosamente libidinosas e excitantes.

A partir daquele instante, Espelho só largou o Poeta ao fim de oito dias. Com Espelho, o Poeta aprendeu a fazer sexo por oito dias sem parar, sem a preocupação com necessidades mais baixas, como dormir, comer ou beber.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

ESPELHO

O velocímetro do troller do Poeta ultrapassou os duzentos quilômetros por hora. Desligou o ar-condicionado, abriu as janelas e deixou o vento entrar e dançar conforme a música do tempo.

- Vento! - disse o Poeta - Lave-me de mim mesmo...

Ouviu-se, então, um fardo leve, em forma de sopro:

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

O Poeta se fez novo outra vez. A febre e as amargas lembranças de Arimatéia deixaram-no. Recordando-se apenas da sensualidade aprovada e provocada pela menina de chupeta que rezava o terço. Viu, em pensamentos, suas coxas cores de jambo, os seios que se mostravam sem pudor, a boca carnuda, os olhos apetitosos à procura do dono da fumaça.

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

A picape parou de forma abrupta, obedecendo fielmente o controle mecânico imposto pelo Poeta. Deu retorno na estrada, e voltou até a casa do homem gordo, da velha que rezava em húngaro, do cheiro de tapioca nas coxas da morena-jambo.

Ao parar o veículo em frente ao boteco, o homem gordo olhou apreensivo para o Poeta, a mulher entoou cânticos em outra língua, e a menina mordeu a chupeta até lhe doer cada dente.

- A menina vem comigo! - disse o Poeta.

- Deixe estar. Veremos o que acontece. O senhor só leva a menina se o Deus dos velhos sofredores assim permitir. - Autoritário com o Poeta e submisso ao futuro, falou o gordo de traseiro estreito.

Enquanto isso, Arimatéia e a velha jogavam água benta fervida nas carnes da menina; outras velhas desdentadas e de bigodes grossos, com braços erguidos, cantavam o miserere. Dois velhos que não se banhavam há muito -em sinal de penitência arcaica- faziam suas preces: o primeiro, mais barbudo do que o segundo, lia, em voz eloquente, a bíblia em grego antigo; o segundo, mais escuro do que o primeiro, chicoteava a si próprio, ora olhava para a menina, ora para as velhas, ora para a faca perpetuada nas costas de Arimatéia.

A menina caiu no chão, gritou e vomitou o novelo de cabelos compridos já expurgados, momentos antes, pelo Poeta. Saca o terço de mármore do vestido curto, e quebra-o em dezenas de pedaços.

Silêncio total. Os velhos e as velhas saem cada um para suas casas, mas antes, Arimatéia limpou o sangue do velho sujo e negro que se açoitava, deixando-o limpo para um próximo exorcismo.

A menina entra no troller do Poeta, olha para trás e, cuspindo restos de novelo, grita à velha e sofrida mãe:

- Volto em oito dias.

O Poeta dá a partida e segue para a fazenda de Samburá. Vira-se para a menina, e, sentindo o cheiro de tapioca que vinha de suas coxas, pergunta-lhe o nome. Ela responde: "Espelho. Meu nome é Espelho".

quinta-feira, 12 de abril de 2012

FEBRE

A manhã avançava rápida, e os ponteiros do relógio do Poeta seguiam essa sangria sem nó. Ainda com o gosto de vinho e de boca nos lábios, parou em uma venda a fim de tomar um café com leite e comer umas tapiocas.

Entrou. Sentou. Pediu. O dono do boteco-de-beira-de-estrada era um gordo de traseiro estreito, e que tinha olhos coloridos.


Enquanto comia, o Poeta sentiu a febre chegar em seu corpo.

- Isso lá são horas para pegar uma febre? - pensou, fatigado e incomodado.


Seus pés estavam começando a pesar, e ficou com medo de nunca mais sair dali, pois raízes brotavam do chão e se enroscavam nos pés do Poeta.

A filha do homem gordo saiu por uma porta azul, mas verde de tão antiga. Era uma moça bonita, na alegria de seus dezessete anos. Trazia à boca uma chupeta de bebê. O Poeta não estava sentindo-se muito bem, e como seus pés recomeçavam a ficar livres, foi lavar o rosto e as mãos. A febre e o calor do café afetaram-no: saía fumaça da testa do Poeta; uma fumaça espessa e gordurosa.

O gordo chamou pela mulher e a filha que tinha a chupeta entre os dentes. Sem tirar os olhos do Poeta, cochichou alguma coisa inaudível para as duas, que entraram rapidamente para dentro de casa, e logo-logo voltaram com cera de carnaúba nas mãos e uma garrafa com água suja. A mulher cantava algum hino cristão em húngaro.

Chamou a atenção do Poeta, o homem gordo, que apontou para uma cadeira de balanço, e fez, autoritariamente, sinal para que sentasse. Obediente e estranhamente direcionado por estranhos, o Poeta sentou e ficou a esperar as ações dos donos do boteco. A filha do gordo chamou por Arimatéia, aos gritos, pela janela do bar. O Poeta pôde escutar a resposta de Arimatéia:

- Tô chegando!

Arimatéia, místico do lugarejo, autodeclarava ser descendente de índios e escravos que falavam com mortos, mas tornaram-se cristãos. O misto de tudo isso deixava Arimatéia no limbo das religiões.

A fumaça espessa e gordurosa que saía da testa do Poeta enchia o ambiente de espanto. Arimatéia chegou sorrindo e rezando, e trazia, horrivelmente, uma faca enfiada nas costas. Pelos olhos do Poeta, Arimatéia entendeu a pergunta e respondeu:

- Em 1908, essa faca me foi enfiada nas costas por um inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo. A promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo seria a minha salvação, mas traria essa faca comigo, para que todos possam ver e crer.

A cada dois minutos, Arimatéia benzia-se, e, de quando em quando, após benzer-se, beijava as costas da mão direita, erguia os olhos, e parecia que enxergava alguma coisa ali.

O Poeta percebeu que as costas de Arimatéia tinham ataduras, pois o sangue não parava de descer. A ferida nunca cicatrizou. A mulher do homem gordo, com as mãos cheias de cera de carnaúba, apertava as têmporas do Poeta. Quanto mais a velha apertava, mais a fumaça saía, e o sangue das costas de Arimatéia escorria com mais velocidade, até formar uma pequena poça de cor de azeite no chão.

A menina da chupeta, que já havia acendido uma vela, estava ajoelhada, rezando o terço e mordendo com mais força a borracha da chupeta. A fumaça da vela misturou-se à fumaça do Poeta. Quando a vela chegou ao fim, o Poeta escarrou um novelo de cabelos compridos, e, instantaneamente, a fumaça parou de sair de sua testa. A febre também o abandonou. Sentindo-se melhor, o Poeta agradeceu sem mesmo entender o por quê de tudo aquilo.

Com a alegria e a aridez de um arcipreste, Arimatéia saiu, mas antes se benzeu e benzeu a todos. Desta vez, não beijou as costas da mão, e sim deu cinco beijos rápidos na ponta de cada dedo da mão direita.

O Poeta pagou o que devia. Saiu. E sem entender, mas aceitando a condição de poeta, dirigiu-se à casa de Samburá.


Outra vez, o Poeta teve certeza da alegria nos dias seguintes, e a confirmação era a fumaça que lhe saíra da testa, e pela faca nas costas de Arimatéia.

- Estranho. Esse mundo é tão estranho... Não vale a pena tentar entendê-lo: ou se entende ou se vive de amores e letras - falou em alta voz, o Poeta.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

CHEIRO DAS BORBOLETAS

A caminho da fazenda de Fred Samburá, o Poeta, na velocidade de seu 4x4, sentia os ventos em seus cabelos a açoitar não somente os pelos fartos mas também os neurônios.

Um sorriso carmesim e adocicado repousava em seus lábios quentes. Quem lhe via de fora, não podia apostar nos pensamentos do Poeta: uma libertinagem pra lá de sacana alternava com a lembrança de cânticos de sua Primeira Comunhão.

Na paz da avenida Litorânea -a estrada para a fazenda do Samburá-, o Poeta notava os calafrios motivados pela saudade precoce dos dias que estavam por vir. A certeza de alegria nos dias seguintes lhe era confirmada pelo cheiro das borboletas atropeladas e queimadas pelo troller.

Resolveu fugir da saudade e da ansiedade angustiosa, e, para tanto, decidiu lembrar. Lembrar de um passado já enterrado e vívido, onde Samburá era tão-somente um amigo triste que cheirava a peixe.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

CABELOS REBELDES

O vento e o Sol que há muito inundavam o rosto do Poeta somado ao barulho do despertador o tirou da cama, sobressaltado e, ironicamente, decepcionado e feliz.

- Que sonho! - disse o Poeta, passando as mãos pelos cabelos rebeldes.

Léa, a gata, espreguiçava-se à janela e lambia-se, como fazem os gatos. Depois de um banho frio e rápido, o Poeta encheu diversas travessas de ração, e deixou ligado um sistema de abastecimento de água, para que a gatinha não tivesse sede, enquanto passava os dias na Fazenda do Fred Samburá.

- Água e comida não faltarão, Léa! - falou acarinhando e recebendo, de volta, o carinho ronronado do animal de estimação.

O Poeta pegou a mochila, as chaves do carro, e partiu para a fazenda de Fred Samburá, ainda com o cheiro de chuva da morena e a visão da ruiva de tão linda.

Ao sair de casa, não pôde notar uma corrente de chumbo pesada no meio da sala nem os cacos de vidro da taça que, antes, sob a cama estava cheia.

terça-feira, 3 de abril de 2012

PANTUFAS NO CHÃO

Espantado e ansioso, o Poeta acordou no meio da madrugada. Teve um sonho estranho, sonhou com montanhas de sorvete e geléia que não acabavam jamais. Levantou e foi direto à cozinha tomar água. Pegou um livro para ler, voltou à cama. Ao lado, viu que dormia Léa, a gata, e em um gesto carinhoso e automático passou a mão sobre o felino, que ronronava e dormia.

Acomodando-se, voltou os olhos ao livro, e leu até perder-se no sono que antes tinha perdido. Não havia notado que, sob a cama, ainda havia uma taça de vinho. Dormindo, o Poeta sonhou um sonho com cheiros dourados e cores surdas. Caminhava descalço, com suas pantufas presas à cintura por uma corrente de chumbo, muito estranho e familiar ao mesmo tempo. Chegando em seu aposento, deliciosamente nuas, duas mulheres o esperavam.

A primeira, uma morena que lembrava o cheiro da chuva; a segunda era ruiva de tão linda, e dela se ouvia o barulho do luar. O quarto, macio e repleto de incenso e penumbra, logo o excitou. A morena com cheiro de chuva tinha uma taça de vinho e, após sorver um pouco, entregou à ruiva de tão linda que, após fazer o mesmo, passou-a ao Poeta. Ao receber o vinho em suas mãos, as
correntes com as pantufas foram ao chão, sem o barulho do pesado chumbo. Estranho, pensou o Poeta.

Bebeu o vinho até o fim, de um gole só, e, enquanto a ruiva tomava de suas mãos a taça, via a morena excitando-se, tocando-se e ronronando num ritmo inaudível de feérica masturbação. A taça caiu das mãos da ruiva, e a maciez do quarto não a impediu de se espatifar no chão. Completamente nu, o Poeta beijava e era beijado, os corpos dos três dançavam numa sincronicidade perfeita, quebrando o silêncio com a surdez do ouro, entrando e saindo de aposentos sem serem notados, com os passos firmes, porém calados -como os dos felinos.


O Poeta sentiu o êxtase da morena, e a beijou mais forte, fazendo-a tremer de medo e de prazer, como nunca sentira antes. Deixou-a em um canto do quarto para que ela recuperasse suas força e consciência. O falo do Poeta penetrou a ruiva, depois de lamber seu sexo, e esta sorriu como sorriem os serafins. As pernas da ruiva de tão linda, firmes e cheirosas, acompanhavam o mesmo compasso do Poeta, e ele sentiu o momento em que a moça começou a desfalecer em seus braços, soltando um hálito tão visivelmente lindo e cheio de cores, que foi capaz de fazer, outra vez, a morena masturbar-se enquanto o Poeta não vinha.