sábado, 12 de maio de 2012

ANA E ÊME

Após o almoço, e conversas, e risadarias, e lembranças, e cafés, o Poeta desejou se trancar no quarto para dormir. Seus olhos não fechavam, já que um silêncio ensurdecedor e inquietante tiravam a pouca paz que, por ora, habitava a alma do Poeta.

Ele pensava em Ana, a esposa de Fred, e em Ême, a irmã do amigo e mãe de Ípsilon. Eram pensamentos de cores vermelhas e intensas. Os cheiros de gorduras misturados aos suores das mulheres maduras estavam excitando o Poeta, e seu falo estava quase a estourar.

As imagens dos braços fortes de Ême, impregnados com restos de temperos da cozinha ou o suposto odor de suas axilas desgastadas com os trabalhos árduos do dia a dia atiçavam as emoções abaixo da cintura do Poeta.

Para fugir dos pensamentos sobre Ême, pensa em Ípsilon, mas sua figura era frágil demais para o momento. Imediatamente, relembra o Poeta no abraço afetuoso que recebera de Ana, logo que chegou.

- Ana não pode ser fiel. Ela me trouxe ao seu peio. Ela me quer dentro dela. – pensa e se admira, constrangido, o Poeta.

Relembra o hálito amargo de Ana e suas unhas sujas. “Deve ter um cu fedido e cabeludo”, excita-se ainda mais ao especular.

Abruptamente, “toc-toc-toc-toc”, quatro toques grosseiros e fortes são dados na porta do quarto do Poeta, que se assusta, e se levanta, sem perceber-se nu, pois na intimidade. Ao abrir a porta, estão imundas e azedas, Ana e Ême, que logo entram.

- Você nos chamou, então viemos. Seus pensamentos estavam queimando nossas virilhas e coxas. – Disse Ana, a esposa infiel.

- Coma-nos, mas não pense em Ípsilon. E quando foder com ela, não tenha dó, ela virou crente. O recado está dado. Agora coma-nos!, ordena Ême, já com o corpo todo suado e gorduroso à mostra.

Quanto mais o Poeta socava o pênis, ora em uma, ora em outra, mais o chorume invadia o ambiente. Até que Ême, por causa da idade, decidiu dar por encerrado, e foi se refrescar no chão, para depois vestir-se.

Ana gozava pela última vez, pois seu ânus já estava dolorido, enquanto o Poeta tirava ceras antigas e ressecadas das orelhas da esposa infiel, que não o deixava penetrar na vagina, pois contava como mérito de não trair, assim, o marido.

Saíram, depois, as mulheres, para a cozinha ou para os trabalhos da casa, enquanto o Poeta foi procurar o paradeiro de Ípsilon. Era bom que ela soubesse que o Poeta era um bom rapaz.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

ALMOÇO

Depois daquela leitura esquisita, como fogo em palha seca espalhou-se pelas vilas da fazenda a história de um homem ainda mais louco e santo do que o finado Ribamar. Iam chegando de mansinho. Todos queriam ver de perto o Poeta. Eram homens e mulheres com as carnes afundadas em si mesmas e marcadas pelo Sol e pelo tempo e pela dor e pela raiva e pela saudade de quem nunca existiu.
 
A maioria parecia gado fraco faminto por água esperando mais da morte do que da vida. E a estes, a presença sacra de um Deus parecia tão distante e tão presente que tornaria tonto um bicho agnóstico.

Um cheiro de banha queimada saía da cozinha, e uma fumaça grossa como sal virgem ganhava o espaço infinito. Um cachorro latiu. Uma velha gorda e suada surgiu com uma panela de bronze sólida, colocando-a sobre a mesa que era tão grande que ia até ali de tão distante. Cabiam todas as pessoas que Fred Samburá desejasse convidar. Mas naquele instante, bastariam ele e o Poeta.

A velha gorda, depois de servi-los, gritava e batia palmas, desorganizando a multidão, tangendo dali os miseráveis para que pudessem comer em outro lugar. A velha gorda tinha o olhar rosado e dócil, acendeu um cachimbo de fumo forte e vil, olhou para o Poeta e sorriu. O carinho da velha fez o Poeta suar de nojo e de emoção; a feição lhe era familiar.

- Essa é minha irmã, Poeta! Chama-se Ême. - disse Fred.

- Ême!? - Sim. Ême. Ela é filha do primeiro casamento de papai, e tem exatamente trinta anos a mais do que eu, Poeta - completou Fred.

- Entendo... - o Poeta já ligava o olhar carinhoso de Ême com o sorriso de Ípsilon.

- E onde estão os outros que não vêm almoçar? - perguntou pensando em Ípsilon, que deveria estar ali em qualquer lugar.

- Esse almoço é nosso, amigo Poeta. Nosso!

- Obrigado!

- No jantar, acrescentaremos Ana, Ême, Ípsilon e Teodoro.

- Ípsilon e Teodoro? Eu não os conheço. Afirmou disfarçando e sorrindo sobre Ípsilon, como só os poetas sabem mentir.

- Ípsilon é minha sobrinha; Teodoro é o cachorro da casa.

E riram mais do que se alimentavam. Ali, naquele instante, o espírito do humor era o prato principal, e deveria ser devorado até o fim, pois a alegria tem alma breve. Bem breve.

terça-feira, 8 de maio de 2012

LEITURA DA CARTA DO MORTO

Fez-se na sala um silêncio tão ensurdecedor, que o Poeta se sentiu mal com sua missão: ser o arauto de um homem morto. Mas de um homem morto que lhe sorrira.

Dentro de um envelope simples, com escrita forte, sete folhas soltas, em sete idiomas diferentes e em sete cores.

A primeira folha era azul. Havia escrito que deveria ser rasgada imediatamente. E assim foi feito. A segunda, terceira e quarta folhas eram verde, amarela e branca, nessa ordem. Deveriam ser colocadas em água fervendo, e depois de desfeitas, serem tomadas como um chá. E foi feito.

Após o chá das letras e das folhas do Ribamar, a sessão continuou. Sobravam, então, três folhas escritas. A quinta, de cor laranja, tinha escrito: "Para doutor Frederico, o meu muito obrigado."

A sexta folha era de um amarelo forte, dourado, e havia: "Com todo o meu amor." Era destinada a todas as mulheres da Fazenda. E Fred sentiu um calafrio de ciúmes por sua Ana. Pensou logo que, algum dia, Ribamar a tivesse desejado. E não gostou disso.

Já a sétima, de cor vermelho claro, continha: "Poeta, leia para todos que estão na sala do doutor Frederico. Esta mensagem foi adaptada por mim. Não tive a alegria de conhecer o senhor nem o senhor teve o privilégio de ficar em minha presença por algumas horas e aprender bastante do pouco que aprendi, precisei morrer um dia antes de sua chegada, mas lembro-lhe que foi o senhor quem se atrasou, e foi por causa de Espelho."

O Poeta sentia o sangue esquentar e parar de circular em suas veias, e todos demonstravam temor e tremor. O homem com cara de poucos amigos, de bigodes e sobrancelhas imundas resmungou alguma coisa, mas calou-se envergonhado com o olhar dominador de Fred sobre ele.

- Escutem, então, vou ler o que nos deixou, por escrito, o Ribamar! - disse o Poeta, percebendo os barulhos da afinação e dilatação dos ouvidos de cada um.

"Idnerpa euq es ednerpa odnarre; euq recserc, sogima, oãn acifingis rezaf oirásrevina. Euq o oicnêlis é a polhem atsopser odnauq es evuo amu megabob. Euq rahlabart acifingis oãn os rahnag oriehnid; euq sogima a etneg atsiuqnoc odnartsom o euq; euq so soriedadrev sogima erpmes macif moc êcov éta o Mif. Euq a edadlam es ednocse sárta ed amu aleb ecaf. Euq oãn es arepse a Edadicilef ragehc, sam es arucorp rop ale. Euq odnauq osnep rebas ed odut adnia oãn idnerpa adan; euq a azerutan é a asioc siam aleb an adiv. Euq rama acifingis es rad rop orietni; euq mu ós aid edop res sima etnatropmi euq sotium sona. Euq rivuo amu arvalap ed ohnirac zaf meb à edúas e rad mu ohnirac mébmat zaf. Euq rahnos é osicerp! Euq osson res é ervil! Euq Su'd oãn ebíorb adan me emon od roma; euq o otnemagluj oiehla oãn é Etnatropmi; euq o euq etnemlaer atropmi é a zap roiretni. E, etnemlanif, idnerpa euq oãn es edop rerrom arp rednerpa a reviv."

Terminada a leitura, o Poeta sentou-se, tomou outro trago da cachaça caseira e perguntou sobre o almoço. Fred não sabia nada sobre o almoço, mas mandou providenciar o mais rápido possível, ainda em êxtase interrogativo.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A CARTA

Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.

- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, solteirão. Pra quê uma carta? - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.


E começava um burburinho cheio de especulação barata na casa de Samburá.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse em alta voz, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem passar a carta para cá. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava lá.  

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

UM MORTO QUE LHE SORRI

Ao chegar na fazenda de Fred Samburá, o Poeta percebeu o peito feliz. Assim como em dias de chuva, a alegria ou a tristeza -em formatos de cores e cheiros- envolvia o Poeta por completo, desenhando um sorriso em seus lábios ainda ressecados pela farra com Espelho. E seguiu rumo ao reencontro com o amigo Samburá.

Ao longo do caminho, vindo de encontro ao Poeta, as mercenárias mulheres de preto choravam a alma de alguém. Parou em sinal de respeito, e esperou o cortejo passar. O caixão estava aberto.

O Poeta perguntou quem era o defunto a um garoto que seguia à parte do funeral:

- Quem era o velho?

- Seu Ribamar. Trabalhava aqui há pouco tempo, era muito religioso, estava doente da cabeça e morreu ontem. - respondeu o garoto alegre e excitado por acompanhar um funeral.

O Poeta notou o rosto cinza-amarelo e a expressão fechada dos mortos-tristes. Pensou na tristeza do morto quando em vida. Parou o carro, desceu e acompanhou o funeral.

O choro e as músicas melancólicas o fizeram chorar.

Logo em seguida, uma das mulheres de preto, provavelmente a chefe das carpideiras, disse-lhe bem perto do ouvido e apertando com força o braço esquerdo do Poeta.

- Pode chorar, mas não venha cobrar as suas lágrimas depois. Somos muitas e o dinheiro é pouco. Sem entender, o Poeta quis rir, e sorriu com os olhos. Olhou para o cadáver já esverdeado por causa do Sol.


Em meio aos curiosos, uma menina de sorriso lindo chamou a atenção do Poeta. Ela ria com outras garotas e faziam fuxicos em meio ao cortejo.

O mesmo garoto que foi abordado pelo Poeta, há poucos minutos, reapareceu.

- Garoto, quem é aquela menina do sorriso lindo? – perguntou o Poeta.

- Ah!, é minha prima. Seu nome é Ipsílon! - respondeu o garoto.

- Quê?

- 'Quê' não! Ipsílon...

- Sua prima se chama Ipsílon? - perguntou o Poeta mais descrente do que espantado.

- Sim, seu moço, e quem é o senhor?

- Sou amigo de Samburá. Venho passar uns dias aqui, e agora vou almoçar com ele, em sua casa. Onde poderei ver Ipsílon outra vez?

- À noite. Ela mora na casa do seu Samburá também, respondeu, e saiu.

Olhou, o Poeta, mais uma vez, para o morto. Notou que Ribamar era um cadáver verde-esbranquiçado que lhe sorria. Olhou para os lados, pensou em desmaiar. Voltou os olhos para Ribamar que lhe continuava rindo.

O troller do Poeta nunca seguiu um caminho mais rápido. E feliz. E admirado.

- Essa é boa! Ribamar é um morto que sorriu pra mim. - Pensou o Poeta ainda desacostumado com as surpresas da vida.