segunda-feira, 7 de maio de 2012

A CARTA

Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.

- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, solteirão. Pra quê uma carta? - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.


E começava um burburinho cheio de especulação barata na casa de Samburá.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse em alta voz, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem passar a carta para cá. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava lá.  

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.

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