sexta-feira, 30 de março de 2012

VINHO NOVO EM ODRE VELHO

Cedinho da manhã, o seu destino era a fazenda do Samburá. Enquanto arrumava a mochila, escutava Pink Floyd e bebia vinho. O som progressivo apressava o término de cada cálice. Ele sabia disso, e sorria. Os cálices esvaziavam e enchiam como o vento dentro de uma casa arejada.

Um banho quente seria ideal.

Trocou Pink Floyd por Los Hermanos, e baixou o volume. Completou o último cálice como as prostitutas preparam o sexo. Na hora de dormir, mesmo sabendo da viagem para a fazenda do Samburá, fechou os olhos como não precisasse abri-los ao acordar.

Dormiu nu. Juntou-se ao Poeta, na mesma cama, mais para velar seu sono do que para dormir, Léa, a gata. Achara na rua há anos, a morrer de frio e fome.

Sob a cama, a última taça de vinho. Intacta. Era um vinho novo em uma taça usada.

quinta-feira, 29 de março de 2012

AROMAS E SABORES

Em casa, o Poeta pôde ser livre, quase tanto o é nas ruas. Um pouco mais à vontade, é claro. Despiu-se das roupas e das idéias, menos do sentimento de que na fazenda do Samburá seria bom.

A lembrança das botas veio vívida, e as imaginou olhando para o mar. Ou sendo vistas por ele. Jamais pensaria que alguém, um dia ou uma noite, as levasse consigo. Não! Os poetas não pensam nisso. Já lhes bastam as tragédias pessoais.

Abriu uma garrafa de vinho, bem devagar, quase como um deus que faz suas preces a outro deus. Pôs em um cálice, uma pequena porção do líquido. Cheirou e cheirou (o cheiro lembra hálito de mulher virgem). Provou e provou (o sabor tem o gosto das bocas femininas que tanto gosta de beijar).

- É por isso que gosto dos vinhos... - pensou o Poeta.

Completou o cálice, e absorveu aromas e sabores, quase como um deus que faz suas preces a outro deus.

quinta-feira, 22 de março de 2012

AS BOTAS DO POETA

Saiu descalço, o Poeta, do mar. Ali mesmo, no chão de areia, sentou-se.
Neste momento invejou os fumantes, e esperou o tempo passar. Depois de seco e salgado, calçou-se de mundo, deixando suas botas na areia.

Quem o viu sair por aí, podia apostar que seus caminhos eram incógnitos.
O Poeta sabia cada esquina que deveria passar.

Os cabelos errantes lhe faziam lembrar o último amor, de tão frio e tão duro.
As mãos, em cada bolso da calça, lembravam-no do amor atual: quente e macio, porém separados.

Olhou para o relógio. Viu as horas só por olhar. Entrou no bar de
conhecidos, que logo começaram a acenar. Falavam de muitos fatos e coisas.

- Amanhã será dia de loucura, eu sinto desde já. Visitarei a casa de
Samburá. Anotem as suas alegrias e tristezas em guardanapos já usados. Levarei
para ele, e as guardará como a carta de um pai ausente.
- Poeta, vai mesmo passar uns dias com o Samburá?
- Sim. Ele passou muitos dias conosco...
- Ora, ele estudava com a gente!
- Sim! Retifico: ele passou muitos anos conosco...
- Poeta, você esqueceu os sapatos?
- Não. Claro que não! Se os esquecesse seria louco, e vocês teriam a
autorização para fazerem a minha internação. Deixei-as, porque quis, no meio do caminho, na areia do mar, olhando para as ondas.

Risadaria em todos os seis cantos do bar: à esquerda e à direita, em
cima e em baixo, dentro e fora.

E o Poeta saiu. Deu um adeus tão pesaroso como quem dá um cheque que não
quer pagar. Mas ninguém notou. Os poetas mentem formidavel e elegantemente bem.

sexta-feira, 16 de março de 2012

SAMBURÁ

Chamávamos o Frederico de Fred, depois passamos a chamá-lo de Samburá.
Isso porque peixe era a principal refeição do Samburá. Seu pai era lagosteiro,
possuía três barcos de pesca e uma parafernália tecnológica -em cada barco-
para melhor achar o crustáceo.

Pois bem, o Samburá tinha alguns problemas. Além de comer peixe, ele
trabalhava com o pai. Tinha sempre o cheiro doce-cobre dos peixes: sempre
impregnado em suas roupas, cabelos, pele, hálito, carro, casa, em tudo.

Quer saber o dia do aniversário do Samburá? 28 de fevereiro. Isso lhe
garante, na astrologia, ser do signo de peixes. Já pensou? Eu não creio em
astrologia, mas que isso vale nessa história, ah!, vale sim!

Outras: quando íamos ao McDonalds, era exatamente o McFish o pedido do
Samburá; pizzas? Sempre de atum.

Pois bem, o tempo não perdoa. O Samburá cresceu e deu continuidade aos
trabalhos do pai: as lagostas. Com um empréstimo no BNB somado às economias de
alguns anos, comprou e montou uma fazenda em Fortim, litoral leste do Ceará.
Viveiros de camarão. O nome da fazenda? 'Recanto do Samburá'. Bem sugestivo,
não?

Com o cheiro que ele tinha, sempre encontrou problemas em arranjar
namoradas. As casas de massagem eram os refúgios sexuais do Samburá, enquanto
os refúgios emocionais ficavam a nosso cargo mesmo, afinal de contas, éramos os
seus amigos. Depois passou a comer as filhas dos pescadores. Até que casou com
a filha de um empregado, de um pescador que cheirava a peixe também.

Por que eu escrevi essa história? Explico. Recebi um emeio no dia 12 de
agosto, dizia assim:

"Poeta, Pôxa, cara, você é difícil de encontrar. Consegui seu
e-mail com (...) Faz 5 anos que casei, meu primeiro filho nasceu semana
passada. Terei um Dia dos Pais de verdade!!! (...) Anota os meus telefones
todos (liga a cobrar, viado!!!), vamos combinar uma visita aqui em casa, passar
um final de semana na fazenda. (...)

Atenciosamente,

Fred Samburá"

É. Deu saudade do jeitão melancólico-quieto-metido-a-feliz do Fred,
sempre roendo as unhas e as carnes dos dedos, como se aquilo fosse remédio para
alguma coisa. Talvez fosse mesmo.


O cara com cheiro de peixe que, no colégio, sempre -sempre mesmo- terminava as provas antes de todo mundo, e conseguia boas notas. O amigo do mar que ia conosco aos shows, e, provavelmente por sentir-se um estranho -um verdadeiro peixe fora d'água, permanecia eternamente de braços cruzados a olhar as bandas tocarem -mesmo quando essas bandas eram Titãs, Paralamas do Sucesso, Cazuza & Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros do Hawai... Ah!, lembro de um show do Roberto Carlos, quando o Samburá deu a sua primeira e única reação: sorrir, dançar e cantar a música "Verde e Amarelo". Creio que aquela manifestação ficará sempre na memória de nossa turma. Feliz anos 1980.

O AVESSO DOS PONTEIROS

O relógio do Poeta marcava duas e trinta e seis da manhã. O ponteiro dos segundos seguia os ritmos perfeito, circular e anacrônico. Ora, cada minuto conseguia, amiúde, conter sessenta segundos, por horas e dias a fio. Essa sincronia treinada, sem erros, sem mudanças, sem tempestividade, inundou de vazio o coração desacertado do Poeta.

Desceu, o Poeta, no rumo da praia, porque é lá que fica o mar. À noite, o mar é muito mais lindo: possui a aparência dos deuses invisíveis, e em sua água sacra só se entra com os pés nus no chão. Com uma lata de coca-cola na mão, saiu por aí, a pé, feito conquistador de prostitutas ricas.

quinta-feira, 15 de março de 2012

ÁDVENA

Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as
luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de
cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em
mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o
aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum
para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do
mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem
água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que
eu não conseguia lembrar.

O corte em minha mão era violento demais para que eu
pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém
perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em
público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das
ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença
era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim,
cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e
grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí.
Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os
momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma
mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia
ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a
fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso
não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo
do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o
era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como
são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que
qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na
boca da gente.
Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra
vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos.
Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos
alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba
crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde,
mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no
poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar
várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo
gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí
de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.

sexta-feira, 2 de março de 2012

MINHOCA NA CABEÇA

Pastor evangélico, engenheiro, cantor, compositor e escritor, o senador Marcelo
Crivella ganhou a missão de multiplicar os peixes do governo Dilma Rousseff. É o
terceiro a ocupar o Ministério da Pesca nos pouco mais de um ano da atual
gestão. Assim como várias na Esplanada, a pasta não tem outra função que não
arrebanhar apoios ao projeto hegemônico de poder petista.

O ministério foi criado no governo Lula e, durante a gestão dele, teve como
finalidade acomodar políticos petistas derrotados em eleições. Foi assim com
José Fritsch e Altemir Gregolin, ambos catarinenses e ambos castigados pelas
urnas, marca também de Ideli Salvatti, ministra da Pesca já na gestão Dilma.

O ministro recém-defenestrado, Luiz Sérgio, não figura na lista de sulistas
abatidos pelo voto, mas na de fracassados: em pouco mais de um ano, conseguiu
ser demitido duas vezes. Agora, por telefone; antes, da Articulação Política,
por insuficiência de desempenho.

De Fritsch ao senador carioca do PRB, todos os ministros da Pesca têm uma
característica comum: não entendem nada do assunto. Para cuidar dos pescados do
Brasil, o PT escalou, nesta ordem, um cientista político, um veterinário, uma
física, um metalúrgico e, agora, um engenheiro civil. Nesta rede, peixe não
vem.

Crivella deixou claro ontem que, desta missa, não sabe nem um terço: "Vou
lhes dizer, com humildade. Eu nem sei colocar uma minhoca no anzol. Na verdade,
estou indo para aprender", disse ele, em entrevista a uma rádio. Ministério não deveria servir para pós-graduação, mas o da Pesca nem a isso se presta.

Desde que a pasta foi criada por Lula, o desempenho pesqueiro do país declinou. Sua
balança comercial tornou-se deficitária a partir de 2006. No ano passado, para
cada dólar exportado no setor, o Brasil importou seis: o rombo foi de US$ 1
bilhão, o dobro de dois anos antes.

A despeito de o orçamento da Pesca ter crescido 831% desde 2004, não houve reflexo
positivo na produção nacional, que só aumentou 25% até 2009 (dado mais recente
disponível), segundo O Globo. O Brasil é hoje apenas o 18º principal produtor no ranking
mundial do setor.

Mas a Pesca é apenas uma das irrelevâncias na Esplanada de quase 40 ministérios
petista. A lista traz, ainda, pastas como a de Política para as Mulheres e a de Igualdade
Racial, para ficar apenas nos casos mais gritantes.

Têm em comum o fato de que "se transformaram no decorrer dos anos em pesadas
estruturas burocráticas que têm custo mais alto do que o orçamento de investimento que administram", como mostrou o Correio Braziliense há dez dias.

"As despesas com pessoal e gastos de manutenção do Ministério da Pesca e Aquicultura
e das secretarias de Política para as Mulheres, de Igualdade Racial e de
Direitos Humanos representam quase o dobro dos recursos de investimentos",
informou o jornal. Neste ano, enquanto a folha de pagamento dos funcionários e a
despesa corrente destes órgãos consumirão R$ 515 milhões, para investimentos
estão reservados apenas R$ 272 milhões.

Na Pesca, por exemplo, serão gastos R$ 7,6 milhões em locação de imóveis, valor que
corresponde a todo o orçamento anual da pasta para o programa de prevenção de
doenças em animais aquáticos. Já o pagamento de funções comissionadas consumiu
R$ 13,2 milhões em 2011, superando o valor destinado ao monitoramento da
atividade pesqueira nacional.

Fica evidente que o que Dilma Rousseff transferiu anteontem para o partido evangélico
não foi uma estrutura destinada a cuidar de algum aspecto da vida nacional. Foi um cabide que terá R$ 154 milhões de orçamento neste ano, não apenas para ser preenchido com
apaniguados como também para distribuir, por exemplo, o chamado seguro-defeso -
a "bolsa pescador" que o governo do PT multiplicou por cinco.

A escalação de Crivella para comandar a Pesca dá ares de galhofa à forma com que o
petismo partilha o poder e compra apoios à sua estratégia hegemônica. Os aliados
já começaram a reclamar das migalhas que lhes sobram. Mas quem perde mesmo é a
sociedade brasileira, que só paga a conta de quem governa com minhoca na
cabeça.

Fonte: Instituto Teotônio Vilela