sexta-feira, 13 de abril de 2012

ESPELHO

O velocímetro do troller do Poeta ultrapassou os duzentos quilômetros por hora. Desligou o ar-condicionado, abriu as janelas e deixou o vento entrar e dançar conforme a música do tempo.

- Vento! - disse o Poeta - Lave-me de mim mesmo...

Ouviu-se, então, um fardo leve, em forma de sopro:

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

O Poeta se fez novo outra vez. A febre e as amargas lembranças de Arimatéia deixaram-no. Recordando-se apenas da sensualidade aprovada e provocada pela menina de chupeta que rezava o terço. Viu, em pensamentos, suas coxas cores de jambo, os seios que se mostravam sem pudor, a boca carnuda, os olhos apetitosos à procura do dono da fumaça.

- Ruah! Ruah! Ruah! Ruah!

A picape parou de forma abrupta, obedecendo fielmente o controle mecânico imposto pelo Poeta. Deu retorno na estrada, e voltou até a casa do homem gordo, da velha que rezava em húngaro, do cheiro de tapioca nas coxas da morena-jambo.

Ao parar o veículo em frente ao boteco, o homem gordo olhou apreensivo para o Poeta, a mulher entoou cânticos em outra língua, e a menina mordeu a chupeta até lhe doer cada dente.

- A menina vem comigo! - disse o Poeta.

- Deixe estar. Veremos o que acontece. O senhor só leva a menina se o Deus dos velhos sofredores assim permitir. - Autoritário com o Poeta e submisso ao futuro, falou o gordo de traseiro estreito.

Enquanto isso, Arimatéia e a velha jogavam água benta fervida nas carnes da menina; outras velhas desdentadas e de bigodes grossos, com braços erguidos, cantavam o miserere. Dois velhos que não se banhavam há muito -em sinal de penitência arcaica- faziam suas preces: o primeiro, mais barbudo do que o segundo, lia, em voz eloquente, a bíblia em grego antigo; o segundo, mais escuro do que o primeiro, chicoteava a si próprio, ora olhava para a menina, ora para as velhas, ora para a faca perpetuada nas costas de Arimatéia.

A menina caiu no chão, gritou e vomitou o novelo de cabelos compridos já expurgados, momentos antes, pelo Poeta. Saca o terço de mármore do vestido curto, e quebra-o em dezenas de pedaços.

Silêncio total. Os velhos e as velhas saem cada um para suas casas, mas antes, Arimatéia limpou o sangue do velho sujo e negro que se açoitava, deixando-o limpo para um próximo exorcismo.

A menina entra no troller do Poeta, olha para trás e, cuspindo restos de novelo, grita à velha e sofrida mãe:

- Volto em oito dias.

O Poeta dá a partida e segue para a fazenda de Samburá. Vira-se para a menina, e, sentindo o cheiro de tapioca que vinha de suas coxas, pergunta-lhe o nome. Ela responde: "Espelho. Meu nome é Espelho".

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