quinta-feira, 15 de março de 2012

ÁDVENA

Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as
luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de
cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em
mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o
aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum
para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do
mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem
água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que
eu não conseguia lembrar.

O corte em minha mão era violento demais para que eu
pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém
perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em
público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das
ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença
era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim,
cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e
grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí.
Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os
momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma
mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia
ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a
fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso
não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo
do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o
era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como
são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que
qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na
boca da gente.
Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra
vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos.
Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos
alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba
crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde,
mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no
poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar
várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo
gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí
de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.

Um comentário:

  1. Gostei, Rodrigo de Almeida. Perigosas tardes de chuva...

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